sexta-feira, 5 de junho de 2009

2ª página da Compilação "Amor Índico"

Enquanto descia as escadas, Joana sentia no coração o peso de todos os séculos da Índia, como se todos os deuses e presságios lhe houvessem cortado o peito em partes desiguais. No cimo da escadaria, todos os deuses a empurravam para um abismo de amor desconhecido, escrito no alcatrão da rua onde encontrara o indiano dos seus sonhos. Ao mesmo tempo, era como se fosse reencontrar o pedaço solto de uma outra vida, de um outro sonho.
Quando entrou no salão, os olhos severos de beleza indiana penetraram Joana e cortaram-lhe os pensamentos soltos. Os olhos de Indja eram os olhos verdes mais bonitos que já vira, como se todas as folhas de Verão se escondessem neles perante a ameaça leve do Inverno. Quando entrou, Indja sorriu-lhes e Joana retribuiu desconfortável.
- Adil sente-se bem. – Precipitou-se a moça.
Adil. O nome dele ecoou na cabeça de Joana e o mundo perdeu todos os nomes possíveis para se resumir a quatro letras. Adil. E quando pensava no nome dele, era como se uma outra parte de si lhe fosse devolvida.
- Então está bem, o seu irmão?
- Não se lembra de nada. Não se lembra dos dias em que vendia sonhos nas ruas e desconhece as mãos que leu dias e dias a fim. Esqueceu as sinas mais recentes e apagou as mais antigas. Desconhece as linhas das mãos e não sabe mais distinguir o sabor da canela do açúcar. Não sabe sequer os pregões com os quais vendia flores de lótus. É um homem em branco com a memória bloqueada. Apesar disso… Adil lembra-se do amor que sente por si.
Os olhos de Joana abriram-se. Amor? Amor simplesmente de amor?
- Ele estava inconsciente. Não pode lembrar-se de mim. – replicou Joana.
- Os sonhos não adormecem com o corpo. Os sentidos não se apagam nunca e o amor também não. O meu irmão lê destinos que estão escritos em mãos. Há os que estão traçados em ruas. Ele sabe quem és, Joana. E amou-te antes mesmo de o conheceres.
Que homem era aquele afinal? Um amante de sinas que interpretava mãos e descodificava destinos? Que direito tinha ele de a guardar numa história que não existira? Quem, quem era ele para a guardar tão intensamente num peito que ela nunca conhecera e nunca amara antes senão naquela rua?
- Ele amou-te, Joana. – sorriu Indja. – Vendeu-te uma flor de lótus na rua e regressou todos dias só para te ver passar entre as estrangeiras bem vestidas. Ofereceu-te a alma no dia em que te vendeu a flor de lótus naquela mesma rua. Disse que lhe sorriste nesse dia. E todos os dias lia a sina a pessoas comuns na esperança de que um dia pudesse ler a tua. E disse que jamais esqueceria a mulher daquele sorriso.
Joana olhou pela janela. Num momento, perdera o corpo e alma para um desconforto feliz que lhe sabia tristemente a amor. Teria morrido? Nunca sentira o pé tão próximo do abismo. Afinal, era isso o amor, um abismo que devora corpo e alma e deixa apenas o vazio de um mundo parado. Lá fora, as mariposas de Verão rodopiavam na janela e ameaçavam invadir-lhe o corpo em defesa do coração. Joana pensou então que, se o seu coração parasse nesse momento, o mundo continuaria a girar com as suas borboletas coloridas. E o mundo seria exactamente o mesmo sem si, inalterável na sua essência. Quem era, afinal, aquele rapaz que parara o seu mundo numa rua perdida de sentidos?
Silenciosamente, procurou no mistério de Indja as suas respostas. O amor é assim, Indja? Que poderes tem esse teu irmão para levar de mim todos os sentidos e os fazer dele? É assim o amor, Indja? Um monstro de curvas suaves que embala a loucura sem a ver? Os olhos passivos de Indja ofereciam apenas um sorriso mudo de sensações. É isso, Indja?
- Podes ver Adil quando quiseres. Despertou e está ainda no hospital. - Disse-lhe essa.
E quando o disse, Indja voltou as costas para se entregar ao mundo lá fora. O mundo de cores e sabores intensos que não pertenceria nunca a Joana. Quando abriu a porta, o mundo da portuguesinha voltou a mover-se, mas agora a estrela central ganhava nome… Adil. Quando tocou o primeiro degrau, Indja disse-lhe ainda:
- Ele disse que lhe sorriste naquele dia. E disse que jamais esqueceria a mulher de tal sorriso. Pois bem, não esqueceu… Há destinos que estão traçados, Joana.

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